“O mundo da alta modernidade (…) está repleto
de riscos e perigos, para os quais o termo ‘crise’ – não como
mera interrupção, mas como um estado de coisas mais
ou menos permanente – é particularmente adequado”1.
Em questão, o repertório psicanalítico como mecanismo de compreensão do contemporâneo. Para tanto, inicio a reflexão trazendo à baila a metáfora do bloco mágico2.
Desde logo, vislumbra-se uma certa analogia entre a teoria do aparelho psíquico e o funcionamento de
um novo brinquedo, que, naquela altura, se lançava no mercado. Trata-se de uma espécie de prancha de escrever, pelo qual, mediante o contato do celulóide e do papel encerado com a base de cera, viabilizava-se que os escritos da superfície fossem apagados, renovando as possibilidades de inscrição.
Um olhar atento à brincadeira, a partir da conjugação de uma capacidade receptiva ilimitada com a conservação dos traços ali realizados, embora em nível mais profundo, revela o mecanismo explicativo ideal sobre a combinação da consciência com o obscuro mundo do inconsciente.
Consideremos, por exemplo, o sonho como desdobramento da memória, pensar o resgate dos significados recalcados implica na reconstrução da história humana a partir das contingências dos sujeitos (atravessados por traumas, descontinuidades, contradições, etc.), saltando aos olhos as marcas que os outros deixaram em nós.
Nesse compasso, bem compreendido o dinamismo funcional da psiquê, percebemos que os registros nas camadas psíquicas não operam como texto fixo, mas, antes, como inscrições passíveis de rearranjo. De
outra parte, a leitura da escrita não significa necessariamente um acesso à originalidade da anotação.
É dizer, características aparentemente inconciliáveis, tal e qual a permanência dos traços e uma receptividade ininterrupta, se fazem igualmente presentes no aparelho psíquico, enquanto houver vida. Mas
não só:
“As pessoas sofrem. Elas não têm simplesmente
dor – o sofrimento é muito mais que isso. Os seres
humanos lutam contra suas formas de dor
psicológica; suas emoções e pensamentos
difíceis, suas lembranças desagradáveis, e suas
necessidades e sensações não desejadas. Elas
pensam nisto e se preocupam com isto, têm
ressentimento disto, antecipam e temem isto (…)
ao mesmo tempo demonstram uma enorme
coragem, profunda compaixão e uma habilidade
notável de seguir em frente mesmo a despeito de
suas histórias pessoais difíceis. Mesmo sabendo
que podem se machucar, os humanos amam
outros humanos. Mesmo sabendo que vão morrer
um dia, eles se preocupam com o seu futuro.
Mesmo sabendo da falta de sentido em muitas
coisas da vida, abraçam ideais”.3
Eis que surge um ponto crítico.
Freud, no início do século XX, já vinha desenvolvendo sua tese a respeito do trauma intrapsíquico – de natureza sexual – como origem do sintoma neurótico. Entretanto, com o avanço da primeira guerra mundial, foi necessário se debruçar também sobre um problema cada vez mais notório: o trauma da guerra.
Ora, se os sonhos nos servem como artifício de realização dos desejos, deve haver algo mais profundo na repetição onírica de uma situação de terror. E mais, diante de uma situação potencialmente traumatogênica, por que alguns acabam desestruturados e outros não?
Diante deste desafio, Freud, em 1920, publica o badalado “Além do Princípio do Prazer”, onde investiga sobre as causas e efeitos de tais perturbações.
“Há muito se conhece um estado que sobrevém
após sérias comoções mecânicas, desastres
ferroviários e outros acidentes com risco de vida,
ao qual se deu o nome de ‘neurose traumática’. A
terrível guerra que há pouco terminou fez surgir
um grande número dessas doenças, e ao menos
pôs fim à tentação de atribuí-las a uma lesão
orgânica do sistema nervoso, ocasionada por
força mecânica. O quadro da neurose traumática
avizinha-se ao da histeria por sua riqueza de
sintomas motores semelhantes, mas supera-o
normalmente nos sinais bastante desenvolvidos
de sofrimento subjetivo, como numa hipocondria
ou melancolia, e nas evidências de um mais
amplo enfraquecimento e transtorno das funções
psíquicas.”4
“Essa clivagem do ego é, em todo caso, proverbial, e, se outros traumas não ocorrerem, tudo indica que o sujeito poderá seguir seu curso, pois, ele pôde, no momento preciso, ter a sabedoria de progredir traumaticamente.”6 .
Segundo Laplanche e Pontalis7:
“[…] (o trauma) Acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica. Em termos econômicos, o traumatismo caracteriza-se por um afluxo de excitações que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de dominar e de elaborar psiquicamente estas excitações.”
Pois bem.
Após uma revisão da literatura, constatei que a resiliência é um conceito relativamente novo no plano da psicologia. Guarda complexidade na sua origem e definição conceitual, em que pese implicasse em inegável mobilização psíquica, por isso mesmo, não fosse totalmente estranha aos domínios da psicanálise.
Consta que, do ponto de vista semântico, fosse multidisciplinar, apropriado por diferentes campos do saber. Segundo alguns autores, do ponto de vista etimológico, haveria uma raiz francesa, prevalecendo, entretanto, o entendimento por uma ascendência direta do latim.
Caracteriza-se, nas ciências exatas, pela característica de deformação de um material sem a perda de suas propriedades, ou seja, resguardando a possibilidade de retorno ao estado anterior.
Nas ciências da saúde, tudo indica que a expressão aparece a partir da década de setenta. Há que diga que a resiliência poderia ser definida como a capacidade de “[…] sair-se bem frente a fatores potencialmente estressores[…]”. Outros destacarão aspectos adicionais.
De todo modo, existe certo consenso de que onde há resiliência houve o trauma. Mas é também o traumatismo que supõe a retomada do desenvolvimento após a agonia psíquica. Em outras palavras, diz respeito a uma habilidade adaptativa de superar problemas quaisquer, ainda que por eles também sendo transformado, constituindo-se, ao fim e ao cabo, como sujeito, na adversidade.
Mas tenhamos cuidado. A resiliência não se confunde com resistência. Nem equivale à invulnerabilidade. Nesta não se sucumbe, naquela, mesmo após uma desintegração circunstancial, consegue reerguer novamente. E nem é algo estanque. Nem linear.
Assim que, alicerçada em recursos egóicos, relaciona-se com os mecanismos de defesa, guardando
estreita ligação com as experiências de vida do sujeito. E é mais do que uma mera adaptação.
Para Cyrulnik, não é um simples amoldamento às situações traumáticas e suas consequentes feridas. Trata-se de um trabalho diário que envolve “tecer” uma nova composição, utilizando-se, também, dos fios disponibilizados devido a nova experiência. Não é uma substância. É uma malha. Um tricô que se ata e desata.
Com efeito, pondera que, depois de um trauma psíquico, como o trauma físico, instala-se uma perda de tecido afetivo, com necrose e escaras. “É carregar a morte dentro de si”. E acrescenta: “Todo traumatizado é obrigado a mudar, senão fica morto”. Segundo o autor:
“Enquanto o trauma não tem sentido, fica-se paralisado, aturdido, abestalhado, embaralhado por um turbilhão de informações contrárias que nos tornam incapazes de decidir. Mas, como se é obrigado a
dar um sentido aos fatos e objetos que nos “falam”, temos um meio de iluminar a neblina provocada por um trauma: o relato. A metamorfose do acontecimento em relato se faz por meio de uma dupla operação: pôr os acontecimentos fora de si e situá-los no tempo”9.
Apontamentos Finais
Como se viu, enquanto expressão humana que é, a memória não se dá por vencida. Ela permanece e se perpetua, encontrando guarida nas nossas manifestações culturais10, sem negligenciar as lembranças inconscientes de Freud.
Também, ao encontro de que houvera sido dito, em sua equação etiológica: a formação do indivíduo está baseada em suas heranças constitucionais, experiências infantis e experiências vivenciadas na vida adulta11. Aqui, ocupa lugar de destaque a função de um outro significativo, normalmente agasalhado pelos investimentos parentais.
O caso é que o trauma, apesar de um evento marcante, não precisa ser encarado como situação
condenatória. É evidente que a circunstância de haver saboreado relações libidinais prazerosas contribui para o alicerçamento do narcisismo. E isso quer significar recursos psíquicos que proporcionam a capacidade de resiliência.
No entanto, a resiliência é uma habilidade que pode ser aprendida em qualquer idade. Pensando-a como constructo móvel, é qualidade modificável ao longo da vida, conforme a conjuntura. Tal perspectiva valoriza as intervenções tardias, como a psicoterapia, que pode ter um papel relevante na elaboração simbólica do sofrimento.
Através da elaboração, novos caminhos pulsionais são traçados, caminhos mais maduros, igualmente ou até mais satisfatórios. Enfim, de alguma maneira, parece que temos a necessidade de um processo educativo que inclua a vivência de frustrações. Se o traumatismo pode ser prejudicial à criança, também o é o excesso de indulgência.
Finalmente, em relação aos condicionamentos da vida, e apesar das fronteiras que a vida impõe, a gente pode se posicionar. A gente pode pedir a ajuda. A gente pode se inspirar em alguém. Mesmo diante de um quadro ameaçador, mesmo na falta de suporte, conquanto as dificuldades muitas, podemos encontrar um sentido para vida e nos movimentarmos para realizá-lo, apesar de tudo.
REFERÊNCIAS
1 GIDDENS, A. 2002, Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. P.19. 3
2 FREUD, Sigmund. “Uma nota sobre o bloco mágico”. In Obras Completas (1923-1925). Rio de Janeiro: Imago, v. 19.
3 HAYES, S. C., & SMITH, S. Get out of your mind and into your life: The new Acceptance and Commitment Therapy. Oakland,
CA: New Harbinger, 2005 (tradução livre).
4 FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In: Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
5 FREUD, Sigmund. (1917 [1915]) Luto e Melancolia. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1996.
6 PINHEIRO, T. Ferenczi: do grito à palavra. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1997.
7 LAPLANCHE J & PONTALIS JB. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
8 “Chama-se resistência a tudo o que nos atos e palavras do analisando, durante o tratamento psicanalítico, se opõe ao acesso deste ao seu inconsciente. Por extensão, Freud falou de resistência à psicanálise para designar uma atitude de oposição às suas descobertas na medida em que elas revelavam os desejos inconscientes e infligiam ao homem um “vexame psicológico.” in LAPLANCHE J & PONTALIS JB, op. cit.
9 CZERNY, J. Resenha. [Falar de amor à beira do abismo (de Boris Cyrulnik). São Paulo: Martins Fontes, 2006] Revista Brasileira de Psicanálise, 41(4), 149-152, 2007.
10 “[…] eu situaria a cultura no universo do sentido. Isto é, a problemática da cultura, o domínio cultural tudo isso diz respeito à produção, armazenamento, circulação, consumo, reciclagem, mobilização e descarte de sentidos, de significações. Por consequência, diz respeito, igualmente, aos valores. Por certo não estamos falando de sentidos de valores abstratos, em si, mas num circuito de vida social. Dessa forma, a cultura engloba tanto aspectos materiais como não-materiais e se encarna na realidade empírica da existência cotidiana […]” (
Hucitec, 1996).
MENESES, Ulpiano Bezerra de. Os “usos culturais” da cultura: contribuição para uma
abordagem crítica das práticas e políticas culturais. In: YAZIGI, E. (et. al). Turismo, Espaço, Paisagem e Cultura. São Paulo:
11 FREUD, Sigmund. Os caminhos da formação dos sintomas. In Obras Completas (Conferência XXIII), Rio de Janeiro: Imago. Pp. 419-439.