Trata-se de reflexão que abarca as diferentes dimensões da experiência.
Com a premissa de que se estivesse a falar de um fenômeno complexo, resulta necessário reconhecer que o serviço de saúde, tal como prestado, não alcança as profundezas do estar vivo.
Mas chegaremos lá.
Seguindo a tradição hegemônica, de matriz bioquímica (ou anatomopatológica), como forma socialmente legitimada de tratamento (ao menos ocidental e modernamente), adotamos, como procedimento operacional, o jeito certo de praticar o cuidado, a partir dos valores propagados pelo discurso hospitalocêntrico.
É claro que isso tem a sua razão de ser. E a sua eficácia beira o inquestionável.
A questão é que esse modelo explicativo, pretensamente universal, coloca as demais formas de saber na clandestinidade. E é por aí que a coisa complica. Não cessamos de encontrar evidências em sentido diverso.
Desde logo, a “auscultação” dos órgãos (ou parâmetros metabólicos) leva em conta uma concepção específica de saúde, calcada na leitura materialista do reducionismo científico, onde o corpo-máquina é quinta- essência do evolucionismo das espécies.
Nada obstante, em paralelo às categorias celulares, carregamos também, simultaneamente, predicados de ordem subjetiva e sociocultural. Aqui, se pode ajudar o glossário, recorreríamos a uma distinção entre “disease” (de âmbito fisiológico), “illness” (experiência do adoecimento) e “sickness” (doença socialmente compartilhada).
Daí porque convém pensar na constituição do sujeito em três instâncias: o organismo, o corpo e a carne. O organismo remete à ideia da coisa, constante do atlas de anatomia. A carne é a coisa em si, no campo do real. E há, ainda, a arena do simbólico, atravessada pela sexualidade e linguagem, por exemplo.
Dessa forma, novas aproximações são agora possíveis, de sorte a contemplar diferentes perspectivas, que, quando apresentadas aos profissionais de saúde, são capazes de promover grandes reviravoltas.
O adoecer, como sabemos bem os operadores “psi”, é um acontecimento ímpar na vida do indivíduo, convocando-o a lidar com os impasses e desafios da finitude. É um momento de fragilidade, de quebra de onipotência, de contato com as castrações. E tudo ali pode ganhar um novo colorido.
Ganha destaque, aliás, no curso desse processo, as relações que se estabelecem (ou podem se estabelecer): relações sociais (profissionais, familiares, de coleguismo, intimidade, etc.), o dar e receber (trocas de bens materiais e imateriais), as práticas existenciais do indivíduo, os signos que o orientam, seus códigos de conduta, seu universo de representações, tudo isso proporciona meios de provocar elaboração (ou permitir o processamento).
Conquanto isso não pareça importante para o fazer diagnóstico, nem disso dependa a intervenção farmacológica, esses elementos serão decisivos para o sucesso do tratamento, a colocar em xeque a própria concepção de saúde-doença, hoje predominante.
Com efeito, o cuidado haveria que abranger tudo isso em conjugação, com a inclusão de outras epistemologias e técnicas, a partir de outras possibilidades e táticas (ou através de algumas boas histórias). Se não se pretende simplista, a prática terapêutica pode (e deve) englobar a escuta flutuante, com itinerários a envolver a produção de sentido, reflexões sobre a vida que poderia ter sido e não foi (…).
Isso vai muito além de atacar uma enfermidade.