O trabalhador na berlinda: algumas linhas sobre a precariedade estrutural

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“(…) a organização do trabalho exerce, sobre o homem, uma ação específica, cujo impacto é o aparelho psíquico. Em certas condições, emerge um sofrimento que pode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projeto, de esperanças e de desejos, e uma organização do trabalho que os ignora. Esse sofrimento, de natureza mental, começa quando o homem, no trabalho, já não pode fazer nenhuma modificação na sua tarefa no sentido de torná-la mais conforme as suas necessidades fisiológicas e a seus desejos psicológicos – isso é, quando a relação homem-trabalho é bloqueada. A forma de que se reveste o sofrimento varia com o tipo de organização do trabalho. Trabalho repetitivo cria uma insatisfação, cujas consequências não se limitam a um desgosto particular. Ela é de certa forma uma porta de entrada para a doença, e uma encruzilhada que se abre para as descompensações mentais ou doenças somáticas, em virtude de regras que foram, em grande parte, elucidadas. As tarefas perigosas, executadas na maioria das vezes em grupo, dão origem a um medo específico. Contra a angústia do trabalho, assim como contra a insatisfação, os operários elaboram estratégias defensivas, de maneira que o sofrimento não é imediatamente identificável. Assim disfarçado ou mascarado, o sofrimento só pode ser revelado através de uma capa própria a cada profissão, que constitui de certa forma sua sintomatologia”1.

Em questão, um ensaio sobre as condições de trabalho nas sociedades contemporâneas, com desdobramento na constituição das economias psíquicas e o aparente naufrágio das capacidades de agir e transformar. 

Antes de mais nada, convém fazer lembrança de um elemento que nos parece fundamental: as clínicas do sofrimento psíquico, em geral, ignoram o fato de que não se sofre da mesma maneira dentro e fora do capitalismo. 

Ora, não se está a falar de mero sistema de circulação de mercadorias (e produção de riqueza), mas da consolidação de uma forma de vida com consequências profundas nos modos de existir. E, a depender da interpretação que se opera, muda-se a experiência mesma de sofrimento. 

Dito isso, trago à tona obra cinematográfica, como pano de fundo ao debate. 

Trata-se do filme “Você não estava aqui2, do veterano diretor britânico Ken Loach, lançado em 2019. Mais do que tematizar o movimento de uberização, acaba por relatar o desmonte da própria vida. 

Na narrativa, Ricky (Kris Hitchen) busca no “milagre do empreendedorismo” o remédio para a crise financeira de sua família, cadastrando-se como motorista-entregador “patrão de si mesmo”, com a hipoteca de um patrimônio que não tinha (endividamento disfarçado de investimento) e adesão involuntária a uma jornada invencível. O trabalho não termina, nem há solução de continuidade, embora a contraprestação dependa da capacidade de saldar essa demanda. 

Enquanto isso, Abby (Debbie Honeywood), a esposa (também trabalhadora informal), em contornos dramáticos, se desdobra e se afirma como dá. 

Pouco a pouco, com o estrangulamento dos laços afetivos e a experimentação do fracasso, evidencia- se a degradação da sociabilidade, como um todo, e a ruína das relações familiares, no particular, expondo a infâmia da “modernização dos valores trabalhistas”. 

O título original (“Sorry, we missed you”), afinal, muito mais do que a mensagem deixada pelos entregadores quando não encontravam o respectivo destinatário, reverbera os sentimentos que gravitam em torno dos protagonistas, no âmbito doméstico. 

Pois bem. 

Um olhar atento a esse cenário faz perceber uma situação preocupante: o adoecimento laboral ocupa lugar central na gramática do sofrimento. E não raro virão os quadros psicossomáticos. 

Desqualificação, desprestígio, repetição, múltiplos vínculos de contratação (CL T, temporário, comissionado, cooperado, terceirização, quarteirização, pejotização, etc.), baixos índices remuneratórios, rotatividade, escassez de equipamentos públicos de apoio ao trabalhador, são alguns dos aspectos que compõem essa paisagem de esgotamento. 

Com Dejours, aprendemos sobre as estratégias defensivas criadas pelos trabalhadores: quando a organização do trabalho está em rota de colisão com o funcionamento dos homens, ali onde não houver sublimação ou não se encontrar espaço adaptativo, lá emergirá o sofrimento patogênico. 

Em seu juízo, é bom que se diga, a “organização do trabalho” não se confunde com as “condições de trabalho”. As condições do trabalho (aspectos físicos, químicos e biológicos) atacam o trabalhador pelo corpo; a organização do trabalho (divisão de tarefas x relações humanas) ataca pela cabeça, ofuscando a vitalidade mental. 

Isso significa que existem ambientes laborais com situação favorável à manutenção da saúde. Nesse caso, de rigor que o trabalhador possa concretizar as suas idéias, especialmente quando a atividade é livremente escolhida e há alguma flexibilidade para as oscilações de espírito. 

Descreve, ainda, como que a introdução de sofrimento poderia aumentar o desempenho, mobilizando a agressividade contra a impotência. É o caso clássico das telefonistas (call centers), bem agasalhado também pelo relato do filme, na qual a quantidade de trabalho é muito superior à eficiência de resposta, disso dependendo, porém, a sobrevivência do trabalhador. Esse déficit de resposta, não podendo se voltar contra a origem, manobra em outra direção. 

Enfim, suficientemente desenhado o estado da arte, resulta que o modelo econômico, firme nos pilares do livre mercado e da produtividade, tendo o neoliberalismo como expressão triunfante, promove o modelo empresa, também, nas relações sociais (convertidas em transações comerciais). 

É dizer, o modo de compor os meandros da vida, por coerção ou consenso, reflete a lógica mercantil da racionalidade econômica3. Desde esse olhar, e sem representar uma categoria solipsista, o “eu” toma essa atmosfera como paradigma (e os demais como objeto ou adversário), criando modos de subjetivação que propiciam a cisão dos sujeitos. 

Esse esvaziamento (ou perda de si) pavimenta o trajeto para acomodações narcísicas, importando em altos níveis de mal-estar generalizado, inclinação a ideologias autoritárias, suscetibilidade à opinião estereotipada, etc. Tal e qual, faz parecer que o adoecimento é matéria de cunho pessoal. 

Por tudo isso, penso que a noção psicanalítica do sofrimento psíquico como expressão de conflitos e contradições, com atenção à biografia do sujeito, pinta um belo quadro desse calvário, mobilizando o horizonte de crítica social. 

É bem verdade que Freud destacava a psicanálise como mecanismo para permitir que as pessoas pudessem “amar e trabalhar”, como sinalização de boa saúde, e, ao contrário, encarar o que o capitalismo apresenta por amor e trabalho, hoje em dia, só faz agravar essa crise. 

Além disso, sabemos que a psicodinâmica do trabalho tem recebido pesadas advertências, notadamente em relação ao seu modelo metodológico (com ênfase no discurso do trabalhador), em detrimento dos fatores objetivos da realidade, embora proponha intervenções coletivas. 

De todo modo, independente do caminho teórico que possamos adotar, o fundamental é atribuir ao trabalho esse realce, pelo papel que exerce na vida dos indivíduos. Tanto assim que o não-trabalho é igualmente perigoso, se não for pior. 

Em outro plano, também, é interessante pontuar o desencantamento como variável relevante nos processos de reformulação, daí derivando possibilidades de tensionamento. Resta saber como orquestrá-lo. 

Anyway. 

É preciso resistir. É preciso falar sobre. É preciso apostar em saídas coletivas. 

De se notar que dentre os “Objetivos do Desenvolvimento Sustentável” (Agenda 2030)4, preconizados pela ONU, estão justamente a “Saúde e Bem-Estar” e o “Trabalho Decente e Desenvolvimento Econômico

REFERÊNCIAS 

1 DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5a edição ampliada. 12a reimpressão. Cortez Editora. pág. 133-134. 

2 Disponível em https://youtu.be/qqAsnupNKG8?si=MM1d9NmFgZv36pgW 

3 “[…] O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência”. MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular; 2014. 

4 Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/sdgs 

 5 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L14831.htm 

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